segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Parabéns, Clarice

Ieda abriu os olhos e se viu cercada de lençóis revirados, travesseiros espalhados pela cama e pensou ter tido um sonho muito estranho. Ela nunca costumava dormir pela tarde, mas como não pregou os olhos na noite anterior não se sentia com energia para fazer nada naquele dia difícil de mais uma discussão com seu companheiro. Era a eminência de mais uma separação que já estava premeditada fazia anos. Quando a individualidade esbarra no excesso de cobrança do outro. Ela se sentia anulada e já não fazia o que sempre a motivou a viver.
Mas aquele sonho a provocou de uma forma muito forte. Ela tinha a impressão de ter ouvido, no sonho, a própria Clarice Lispector falar aos seus ouvidos que ela precisava escrever. Era sobre deixar sua marca no mundo e dar vida a problemáticas que passam despercebidas na rotina dos dias.
Mas ela sentia sua voz acoada, abafada, e suas mãos trêmulas mal conseguiam segurar uma caneta.
Não sabia por onde começar pela falta de prática desses anos sem criar. Talvez Clarice pudesse guia-la e contar o caminho das pedras.
Ela pegou o celular e começou a escrever no bloco de notas. Hoje em dia ninguém mais escreve em papéis e o computador já se tornou quase obsoleto.

"Clarice sussurrava nos meus ouvidos, implorando:
- Escreva, escreva! Por favor!
E eu deitada no meu quarto escuro deixando a depressão dos espíritos que me cercavam tomar conta de mim, limitando as minhas ações, só podia dizer não.
- Não posso! Não tenho capacidade para isso. Jamais serei como você. Nunca criarei seres tão humanos e fragilizados na sua existência como você fez. Eu sei que hoje é seu aniversário mas não posso. Desculpe, Clarice."

Essas foram as primeiras linhas que vieram a sua mente, junto com o medo de ser julgada pela pretensão de evocar logo quem. Pensou se publicava ou se guardava pra si essa experiência controversa. Pensou em desenvolver um personagem, em salvar a nota e continuar depois. Pensou também que a ideia poderia ficar esquecida mais uma vez, como de costume ultimamente.
E decidiu que seguiria em frente. Afinal ela não poderia negar um pedido de Clarice. Naquele momento despertou uma estrela brilhante na sua mente. Estava ali o ponto do reinício de tudo.
Agradeceu ao espírito da escritora  e foi em busca de uma caneta e um papel.


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